segunda-feira, 15 de novembro de 2010


Tudo me parece estranho, mas as formas vão se delineando no escuro.
Imagens de medo e terror são reconhecidas pela minha mente.
Clareando lentamente como o amanhecer, as figuras se transformam: eram apenas frutos da minha imaginação.
Me encontro em um quarto pequeno, limpo e mobiliado. "Meu coração", penso e me surpreendo. Não era assim que eu o imaginava. Pensava que ele era como o saguão de um castelo francês do século XIII, ou como uma sala inglesa do período imperial, ou ainda como uma casa de campo na Alemanha, repleta de jardins.
"É pequeno aqui", e úmido, e frio. Como um lamento, faço minha observação mais perspicaz: ninguém habita este lugar.

Como, como isso pode ser verdade? Se amo tantas pessoas, se daria minha vida por algumas delas, se desejo passar o resto dos meus dias com uma? Como nenhuma delas se encontra aqui?


Olho mais uma vez ao redor e noto coisas que deixei passar. Um retrato do meu batizado, o meu urso Tito, meu primeiro caderno de caligrafia, o livro "O Elefante Basílio", o cristal quebrado de minha primeira discussão, o anel dos meus 15 anos, o sangue da minha virgindade, as lágrimas da minha partida, folhas datilografadas com meus escritos, projeções nas paredes com minhas palavras, duras e calmas.

Com horror, noto que o quarto começa a sangrar. Rachaduras que eu não havia percebido antes cospem os detritos do meu órgão involuntário. Lembranças que pulsam meu coração e que o lembra de suas feridas.

Rachaduras mais antigas, remendadas com reboco, começam a inchar. O quarto, encharcado de vermelho, dá sinais de que irá explodir a qualquer momento. "Solidão", penso, e vejo no espelho todos os erros que cometi. Meu rosto, rasgado, costurado e repleto de hematomas, estampa horror. Choro, e um líquido negro escorre dos meus olhos.


Três batidas, rápidas como as do meu coração. À porta, uma figura negra, com asas. Em sua mão, uma seringa com um visco tão negro quanto seus olhos (que destoavam tanto dos seus castanhos!, não pude deixar de pensar). O ser encarou-me, e senti como se minha alma fosse perfurada. Com um único movimento, preciso como ventania, cravou nas paredes do quarto (e só então percebi que tudo ali era formado de carne) o instrumento de suas mãos.


Meu coração foi enegrecendo, contorcendo-se, soltando gemidos acelerados com o som do seu pulsar. Aos poucos foi murchando, cada vez mais negro, e suas batidas foram ficando lentas.

O coração já me sufocava. Porque, desde o momento em que o ser adentrara (e sentia como se ele tivesse entrado em mim), não consegui me mover. Paralisei, não por horror ou medo, mas por não ter pra onde fugir.

O ar me faltava. Meu corpo, coberto por sangue e visco negro, preparava-se pro seu último suspiro.


O ser me sorriu, e seu sorriso era branco e brando.




Desperto.


Minha respiração e pulsação aceleradas. Meu corpo encharcado de suor, meus olhos vidrados.

Olho pro lado e existe alguém ali. Por quanto tempo, não sei. Como um relógio ouço as batidas do seu coração, marcando meu tempo.


A imagem do quarto vazio volta à minha mente. O sorriso do ser invade minhas retinas, e posso sentir entranhando-me no corpo a escuridão do seu lívido desejo.

Matar-me do modo mais cruel. Da maneira mais poderosa.


Em minhas narinas, sinto cheiro de sangue.



"Sozinha", escuto em meu pensamento.
E apodreço em suor, sangue e visco.

terça-feira, 9 de novembro de 2010

Para um anjo alto


As nuvens não estavam desenhadas. O céu não se mesclava entre o roxo e o rosa, e aquele pôr-do-sol não foi doce. O dia amanheceu claro, mas o tempo tratou de acizentá-lo.

Chovia.

As memórias da noite passada, já meio distantes, traziam um gosto amargo na boca. A preocupação, a elaboração de hipóteses, o medo.

E agora, as borboletas no estômago.

Chovia.

Choviam lágrimas dos meus olhos.




Ao lembrar de todas as vezes que olhei pro céu nos últimos meses, voltou-me uma visão. A imagem de um anjo, alto. Cara de guri, sorriso doce, cabelo comprido, barba por fazer. Olhos fundos e gentis. Tão gentis que fizeram eu me perder no primeiro instante.

Um anjo alto. Me estendendo a mão.

Milhares de vezes eu o vi. E o anjo estava sempre ali, a me ajudar. Poucas vezes o vi triste, sem forças. Poucas vezes ele fraquejou. Sua mão nunca se recolheu, eu a encontrava sempre estendida. Oferta.

Certo dia notei o anjo diferente. Seus olhos fundos se encontravam tristes, seu sorriso sombrio, sua altura minimizada pelo encolhimento. A mão estendida em súplica. Pedindo ajuda.

Chovia.

O primeiro pingo verteu dos olhos do meu anjo.

A chuva caiu límpida dos meus. O anjo, clemente, me pedia desculpas, me pedia conselhos, me pedia respostas. Eu não as tinha. Eu nem sequer podia perdoá-lo porque, eu queria que ele entendesse!, não havia o que perdoar. Eu também não tinha as soluções, não tinha a poção que o faria parar de pingar.

O segundo pingo brotou da consciência do meu anjo.

Porque ele se deu conta da sua condição. Errou, e agora sofria por isso. Carregava nas mãos o peso de um mundo (eu via esse peso refletido em seus olhos fundos), sentia em suas costas o porvir fatal (eu sentia em seu abraço apertado o quase-medo que lhe cercava). O anjo me disse, entre temporais, que não podia perder o que tinha. Que não queria.

O terceiro pingo escorreu pelo canto do olho do meu anjo.

E então, ele sorriu. Percebeu que não estava só, que era amado. Ah, sim, anjo, era muito amado. Que, ainda que uma nova vida tenha começado, que erros graves tenham sido cometidos, que consequências teriam que ser encaradas, não passaria por isso sozinho. Sim, havia um outro anjo, com um olhar puro e um sorriso apaixonante, com ele. E uma mortal, que os amava com todos os batimentos acelerados de seu coração.




A chuva parou.

E no sol, entre nuvens descarregadas, pude ver mais uma vez a imagem do anjo alto. Seu sorriso era doce novamente. Sorri de volta.

Olhando em seus olhos (fundos, sempre fundos!) notei que compreendeu a mensagem. Ele não perderá o que tem. Jamais.


Sua mão não está mais estendida pra mim.

Agora andamos de mãos dados.

segunda-feira, 8 de novembro de 2010

Para um velho amor



Nunca, nada nunca acaba.

Não acaba porque foi intenso, porque é verdadeiro, porque será eterno.

Nunca, nada nunca morre.

Porque ainda que, aos poucos, o tempo desgaste os compassos da nossa melodia, e o ritmo vá se distanciando da salsa e se aproximando da 5ª sinfonia de Bethovenn, não cessa. Os corações ainda pulsam embalados pelo bolero da meia-noite.

Nunca, nada nunca perece.

Sempre existe a memória, prece de todos os dias, pra nos recordar do momento passado. O momento presente, esse sim, é formado por precisas ligações entre o anterior e o próximo. O esquecimento não existe. Ele apenas é um lapso atemporal de nosso espaço.

Nunca, nada nunca sobrevive.

Sobreviver é uma conturbada forma de seguir em frente. É estar sobre a vida, além dela. O amor não sobrevive. Ele vive. Ele revive.

Nunca, nada nunca passa.

Porque mesmo se tornando passado, não passou exatamente. Ficou guardado em alguma gaveta das lembranças, dos eternos, das revistas.



E não pense que "velho" é um pejorativo. É apenas pra lembrar o quão antigo é esse sentimento nutrido por duas almas que são velhas conhecidas. Porque não, não pode ser dessa vida.

Esse amor é muito mais antigo do que eu.

sexta-feira, 5 de novembro de 2010


Vá pro inferno com o seu riso! Não, não vá, não, por favor, se for, me leva contigo. Me perdoa, eu estou confusa, meio perdida, sei lá. Quero te dizer algo importante, só não sei como. Estou com frio. Não, não quero um casaco, obri-. Não, também não quero entrar, só quero que me escute. Eu sei, ficar no sereno faz mal, eu sempre estou pesteada, posso me gripar, eu sei, mas é rapidinho, só me escuta, só preciso te dizer algo. Eu só queria te dizer que eu li sim aquele conto que você pediu pra eu ler, meio confusa aquela coisa, sobre avencas, samambaias, pinheiros. Sim, sim, muito bonito, é verdade, o cara escreve bem. Não, não achei engraçado, é bem sério, muitas vezes as pessoas não escutam e simplesmente partem. Você está fazendo isso agora e nem se dá conta, olha pra mim, por favor, por onde você anda? Sempre viajando, sempre tão longe. Sim, as nuvens, bem bonitas. Isso me lembra uma fala do meu texto, voar e. Espera, me escuta, volta pra cá. Isso, me abraça, o teu calor espanta o frio, às vezes você fica tão distante... Não estou reclamando, só estou dizendo que. Eu entendo, sei que tens pouco tempo, muitas coisas pra fazer, mas será que a gente não poderia agir normalmente pelo menos por aqui? É que as vezes parece que você foge, que vai pra longe e tenta me evitar - não, eu não estou te acusando. Me escuta, eu só sinto a sua falta. Falta, entende? Não, não ria, por favor. Isso é sério, eu sinto sua falta e. Vá pro inferno com o seu riso!