quarta-feira, 23 de março de 2011


Ela dançava suavemente pelo salão. Havia pessoas por todos os cantos, o chão tremia com tantos passos e o murmúrio de vozes era ensurdecedor. Ainda assim, era suavemente que ela dançava. Costurando entre as pessoas, desviando de casais, deslizando sem esbarrar em nenhum obstáculo. Seus pés mal tocavam o solo, e seus braços pendiam ao longo do corpo, onde suas mãos seguravam o longo vestido rodado. Era cor de palha seu vestido, fazendo um lindo conjunto com o cabelo de cor semelhante, distribuído em curtos cachos, e os olhos azuis da cor do céu.

Ela se zangava quando alguém lhe dizia que seus olhos eram da cor do mar. Não, não eram. O mar é volúvel, por vezes escuro e misterioso, nunca se sabe os perigos que reserva. Já o céu é claro e limpo, com um azul cerúleo que encanta. Era dessa forma que ela se portava, clara e independente. Com sua forte personalidade encantava a todos de maneira tão eficiente quanto o céu.

Mas ela percebeu que algo estava errado quando viu um homem sem rosto caminhando pelo salão. Interrompendo a sua dança de borboleta, seguiu às pressas (no limite que uma dama pode se apressar) atrás do cavalheiro. Porém, eram muitos os presentes na festa e logo perdeu de vista o seu perseguido. Só então se deu conta de que ele não era o único: agora, a maioria dos presentes também estavam sem rostos.


Foi nesse momento que, em outro canto da casa, ele se deu conta de que algo estava errado. Mantinha uma conversa mesquinha com uma garota fácil, estava apenas fazendo o jogo que antecede todas as conquistas. Para ele, aquilo era fácil. Era conhecido em toda província por suas inúmeras habilidades, muitas veneravelmente apreciadas pelas mulheres. Algumas dessas, é claro, não podiam ser mencionadas diretamente sem colocar em risco a honra dos presentes. Rivalidades existiam, já que seu encanto causava inveja em muitos pretendentes das melhores damas da cidade.

Então, sem nenhuma prévia que geralmente antecede desastres, a sua taça de vinho quebrou enquanto ainda estava em sua mão. Espantado, olhou para a mulher que o acompanhava e percebeu que sua face desaparecera. Precipitou-se à janela e lá fora avistou a cor chumbo no céu.


Nas escadarias que separavam o jardim da porta central, ela estava estática, mirando o céu. Todas as estrelas haviam desaparecido e a impressão que se tinha é de que uma camada de concreto havia coberto o céu. Seu coração batia aceleradamente, suas pupilas dilatadas buscavam alguma saída, compreensão ou resposta.


Ele percorria o salão desesperadamente. Eram tantos não-seres que seu coração pulava toda vez que avistava um rosto vazio. Tentava manter o foco: precisava encontrá-la.


Ela atravessou o jardim a passos largos, sem mais se importar com a elegância. O estábulo ficava um pouco afastado da casa do senhorio, o suficiente para não incomodar convidados em dia de visitas ou recepções, como aquela. Tentava se lembrar de como havia sido convidada.

Todos os olhares estavam voltados à ela. Era a mão mais desejada da província, todos os cavalheiros presentes desejavam solicitar-lhe uma dança, muitos com o intuito de conquistar seu coração. Ela não era apenas uma mulher de inteligência e beleza ímpar (como se isso não fosse o bastante para aguçar todos os sentidos da cidade), ela também era inalcançável. Sempre dançando só, bailando uma ciranda interior que lhe proporcionava um brilho nos olhos e um rubor na face. Eles não sabiam, mas ela dançava uma sinfonia executada por violinos e bandolins. Internamente, sua chama era mais intensa.


Um amigo seu estava pretendendo a mão de uma dama. Ele nunca a tinha visto, mas o amigo lhe garantira que era a mais bela das mulheres. Como o amigo parecia irremediavelmente apaixonado, aceitara seu convite para apadrinhar o cortejo dos dois, já que seu nome tinha forte impacto sobre as mulheres e suas famílias. Poder era sua palavra-chave.


Ela já alcançara os estábulos. Conhecia bem os cavalos, apesar de sua memória ser vaga a respeito da origem dessa familiaridade. Entre os presentes, escolheu um alasão branco, que tinha em sua ferradura as asas de Pégasus. Ela não era supersticiosa, mas sabia que teria que correr muito para ficar salva. Não sabia para onde iria nem do quê estava fugindo. Só sabia que precisava sair dali.


Seu olhar foi atraído para a janela. Viu um vulto branco cruzando o jardim em uma velocidade assombrosa, e algo em seu coração lhe avisou que aquela era a mulher que ele tanto procurara.

Dois minutos depois, estava montado em seu corcel negro como a noite que cobria o campo quando a lua se eclipsava. Cavalgava em um ritmo tenebroso, e nas duas laterais do cavalo, asas estavam marcadas à ferro em seu pêlo.


Era um lago fundo. O cavalo não conseguiria atravessá-lo, teriam que dar a volta. Ela já ouvia o barulho de cascos se aproximando, teriam que se apressar. Logo alcançariam a outra margem.


Ele vislumbrava a clareira em frente e tinha certeza que a encontraria. Apressou o passo. Chegou à margem mais próxima. Do outro lado, avistou a forma branca em uma linha retilínea em relação a sua forma preta.


Os dois únicos rostos restantes naquele universo se olharam por longos segundos. Ele sorriu.

Lá no céu, uma rachadura se fez.

E o seu sorriso começou a apagar-se.