quinta-feira, 30 de dezembro de 2010

Notas soltas


Os primeiros raios de sol da manhã se esgueiram pelas venezianas do meu quarto. Desperto silenciosamente, com um estranho sorriso em meu rosto, e ouço mentalmente trechos da sinfonia nº 8 em sol maior de Dvořák.

Aos poucos, memórias da noite passada voltam a minha mente.



Eu cantava. Cantava "Pra ser sincero", pensando em outro alguém. Ele adora Engenheiros. Adoraria estar aqui (mas não, ele não está).

Regendo a música, dois irmãos com nomes interessantes. Nomes de personalidades que admiro ou repudio. Uma conversa agradável sobre grandes musicistas se inicia entre nós três, e rapidamente surge uma afinidade e um misterioso carinho entre nós. Com os pitacos de uma loira gente boa, nossa conversa fluía até que não resisti ao ouvir "Ilu Ayê" tocando no som, e me precipitei pra pista de dança.

Enlouquecida, dançava com todo o pessoal das Cênicas, e permaneci dançando por muito tempo. Quando olhei pro lado, ali estava ele, o irmão mais novo, dançando junto comigo. "Que surpresa", pensei, porque ele era um pouco reservado. Mas, sem me dar conta da teia que estava se formando ao meu redor, continuei no meu ritmo. Sentia os olhares julgadores em mim, e cada vez que um conhecido próximo passava e me via dançando com ele, gestos de "estou de olho em você" eram expressados pra mim.

Dois amigos formavam a roda íntima junto comigo. Amigos do coração, que aprendi a amar rapidamente.

Uma hora se passou, e lá estava eu brincando no gira-gira com o irmão mais velho, que já estava milhas adiante de Bagdá.

Sentados um pouco afastados de todos, conversamos. Ele me disse, bêbado, o quanto era óbvio o interesse do irmão mais novo por mim. Mais uma vez, me senti idiota. Por que as coisas eram tão claras pra todos menos pra mim
? Será que a inocência com a qual eu brinco tanto realmente existe? Por que, mais uma vez, não era óbvio pra mim.

Encabulada, acabei evitando-o. Não, não queria me envolver com ninguém agora. Era tão recente o fim, eu não havia esquecido e dois de cada três pensamentos meus envolviam o meu outro alguém. Eu não estava preparada.

No fim da festa, depois de tantos desencontros provocados por mim, o destino quis que uma rosa nos unisse. Sentada em uma mesa, as 4 horas da manhã, ele se aproximou e disse-me o que queria. Eu expliquei para ele a situação delicada em que me encontrava e, para minha surpresa, ele não insistiu. Concordou que era complicado e que, apesar de não modificar as intenções dele, ele compreendia a minha confusão.

Fiquei pasma. Era a primeira vez que via um homem falar assim.

E, soando como a 8ª sinfonia em sol maior de
Dvořák, ele disse encarando-me com um olhar profundo:


Te conheço tão pouco, e já te esperaria a vida inteira
.

quarta-feira, 15 de dezembro de 2010

Só pra você se lembrar


Ah, que dia!

Chorei, ri, trabalhei, passei mal, comi, sorri, entrei em crise, contei.

Contei o que não deveria ter contado, mas como você disse, aconteceu.

Agora você sabe, agora não consigo te olhar nos olhos.

Agora tudo vai ser diferente?

Espero que não...



Enquanto meu corpo tremia, enquanto minha mente oscilava, alguns pensamentos ainda eram claros.

Alguns pensamentos que falavam de você.

Não espero o melhor dessa situação. Sei que você vai se afastar e, ai, isso dói muito em mim.

Mas queria que você entendesse. É significante. Não é grande nem pequeno, apenas é.

Carinho.

Por favor, me diz que nada vai mudar.




Afinal, tudo o que eu disse é: gosto de você.

quinta-feira, 9 de dezembro de 2010

Para um marujo


As ondas daquele mar eram densas e profundas.
Negras, às vezes encaracoladas ou pipocadas.

As ondas daquele mar eram surpreendentes e perigosas.



Navegando em um pequeno navio veleiro, havia um marujo. A barba mal aparada denotava os dias que velejava em alto-mar, que já contavam meses. As protuberâncias na testa (bastante extensa, por sinal) conotavam a preocupação de um navegador experiente em vias de tempestade.

"Mau tempo", ele disse, olhando o céu fixamente. "Devemos nos preparar para a tempestade", lançou em tom grave.


Éramos três.
O marujo, dono destes mares, comandava o navio. Tinha sobre suas costas o peso das ondas, mas carregava em seu coração o espírito de Netuno. Nos vincos de seu rosto, a força de uma determinação infinita e a experiência de uma alma planteada de vivências.
O seu imediato era um efusivo jovem, com cabelos longos e roupas mal cuidadas (principalmente os sapatos, não sei como conseguia andar com aquilo!). Não possuía a sapiência do marujo, mas tinha igual força de vontade e curiosidade.
Eu, uma serva de Etros. Salva por acaso, mantida por acaso, amada por acaso.


Agora, me encolhia na popa. O medo tomava conta dos meus nervos e eu via a morte certeira vindo ao meu encontro.

O céu era uma mescla de marrom e preto. As nuvens tingiam suas bordas com luzes claras e repentinas, e os barulhos do céu calavam os ruídos do mar.

As ondas agitavam-se e erguiam-se metros acima de mim, como se travassem uma batalha épica com as forças que regem o firmamento. Eu via cones desenhados no céu, e uma tromba d'água se formou ao leste.

O medo corroía minhas entranhas.

Passos no convés. A pouca luz que restava no céu produziu uma sombra sobre mim, e os meus olhos não se ergueram por medo de encontrar em meu foco o olhar castanho e gentil daquele homem.
Com a ponta dos dedos, ele tocou minha testa. Aos poucos, deslizou sua mão pelo meu rosto, cerrando meus olhos, enquanto repetia baixinho "calma, calma, calma".

Minha respiração normalizou-se e meu coração desacelerou seu ritmo. A voz do marujo foi ficando distante, e só pude sentir à minha esquerda, ainda meio distante, a presença do imediato, que observava de longe a cena. Preocupação, era isso que irradiava dele. Mas era tão genuína que me comoveu ao invés de me assustar.


Os primeiros raios de sol invadiram a cabine. Abri os olhos, e minhas pupilas indecisas saltaram por um tempo até se acostumarem à luz do lugar. As camas ao meu lado arrumadas, o navio silencioso como um templo. Apenas o burburinho do mar era audível.

Subi ao convés e encontrei estirado próximo à quilha o imediato, encharcado e dormindo um sono de exaustão. Por instinto, corri à ponte para buscar cobertores e toalhas secas, quando vi parado à proa o marujo. Ele estava de costas pra mim, com as mãos cruzadas atrás, o corpo ereto e roupas secas. Ao seu lado, um bolo de tecidos envoltos por uma poça de água.

"O que aconteceu com...", ele fez um gesto para eu me calar.

Me aproximei, curiosa para descobrir o que ele estava observando. Seus olhos estavam perdidos no horizonte, focalizando a linha tênue que separa o mar do céu. O dia estava bonito novamente e qualquer sinal de tempestade desapareceu por completo.

Cinco minutos se passaram e nenhum músculo do marujo se moveu.

Dez minutos e a primeira palavra. Uma ordem. "Ouça".

Mais dois minutos.

"Sempre ouça o mar. Não importa a cor do que se aproxima, o mar sempre diz a mesma coisa."

Focalizei, então, minha atenção no burburinho das ondas. E depois de vários minutos (talvez até horas, porque o sol já ia a pino), ouvi, de longe:

"calma, calma, calma".

E então, compreendi. O marujo agora me olhava. As rugas nos olhos tornaram-se lindas pela largura do seu sorriso. Meu coração estava aos pulos e meus pensamentos saltitavam nas gavetas da minha mente.

Ele me abraçou. Imediatamente, entendi que Etros havia sido bondoso.
Aquele era o meu lugar. O mar.



"A tempestade?", perguntei.

E ele me respondeu: "Já passou."